ARTIGO ORIGINAL
Toxoplasmose na gestação

Toxoplasmosis in pregnancy

Luisa Guimarães Santos 1, 2, Renato Augusto Moreira de Sá 1, 2, 3

2021
Vol. 131 - Nº.02
Pag.91 – 94

RESUMO

Usualmente, a toxoplasmose é considerada inofensiva para uma mulher não grávida, mas é potencialmente prejudicial durante a gravidez, especialmente no primeiro trimestre. Uma das principais consequências da infecção por em mulheres grávidas é a transmissão vertical para o feto. As mulheres grávidas que adquirem a infecção pelo geralmente permanecem assintomáticas, embora ainda possam transmitir a infecção aos fetos, com consequências graves. A toxoplasmose congênita pode causar doenças neurológicas ou oculares graves (levando à cegueira), bem como anomalias cardíacas e cerebrais. O cuidado pré-natal deve incluir a educação sobre a prevenção da toxoplasmose e exames de rastreamento.

ABSTRACT

Although toxoplasmosis is usually considered harmless for a nonpregnant woman, it is potentially harmful for a pregnant woman, especially in the first trimester. One of the main consequences of infection in pregnant women is vertical transmission to the fetus. Although pregnant women who acquire infection usually remain asymptomatic, they can still transmit the infection to fetuses with serious consequences. Congenital toxoplasmosis can cause serious neurological or eye disease (leading to blindness), as well as cardiac and brain abnormalities. Prenatal care should include awareness about the prevention of toxoplasmosis and routine screening.

Keywords

toxoplasmosis, congenital
maternal serum screening tests
prenatal diagnosis

Palavras-chave

toxoplasmose congênita
testes para triagem do soro materno
diagnóstico pré-natal

INTRODUÇÃO

A toxoplasmose é uma doença causada por um protozoário intracelular obrigatório, o Toxoplasma gondii. Em seu ciclo de vida, animais da família Felidae como o gato são seus hospedeiros definitivos, e outros animais, incluindo o homem, atuam como hospedeiros intermediários.

Quando essa infecção é adquirida pela primeira vez durante a gestação, pode haver transmissão para o feto de forma hematogênica, através da placenta. Nos Estados Unidos, é estimada a incidência de infecção primária aguda em duas a cada 10 mil mulheres grávidas1. Já no Brasil, a incidência varia entre quatro e dez por 10 mil gestantes2.

Quanto mais madura for a placenta, mais fácil será a passagem do parasita através dela, portanto o risco de infecção fetal aumenta com a idade gestacional. Na 6ª, 18ª e 30ª semanas de gestação, o risco de infecção fetal é de 2,2, 23 e 56%, respectivamente3. Entretanto, a frequência de sequelas graves para o feto é maior quando a infecção ocorre no início da gravidez, reduzindo-se ao longo da gestação4,5.

O risco de abortamento em mulheres que adquirem a infecção durante a gestação é de aproximadamente 0,5%. Em gestações com infecção fetal comprovada, o risco de morte fetal é estimado em 1,3 a 2%6.

A fonte de infecção materna pode ser a ingestão de bradizoítas contidos em carnes cruas, mal-assadas e curadas ou a ingestão de esporozoítos no consumo de água contaminada ou frutas ou vegetais mal lavados.

O acompanhamento pré-natal adequado, que inclui pesquisa sorológica e orientações às gestantes suscetíveis, permite prevenção e tratamento adequado e precoce em caso de infecção, evitando, assim, desfechos fetais mais graves.

DIAGNÓSTICO MATERNO

A infecção materna aguda geralmente é assintomática (≥80% dos casos) e o diagnóstico dá-se por meio de pesquisa sorológica seriada, idealmente iniciada no período pré-concepcional.

A realização sistemática de rastreamento de anticorpos imunoglobina G (IgG) e imunoglobina M (IgM) para Toxoplasma gondii durante a primeira consulta de pré-natal é recomendada pelo Ministério da Saúde e serve para identificar não só as mulheres infectadas, como também as susceptíveis e as que já tiveram contato com o patógeno no passado7. Esse é considerado o método de eleição para o rastreio.

Se o rastreamento for realizado no período pré-concepcional ou no primeiro trimestre de gestação, anticorpos IgM negativos e IgG positivos indicam imunidade prévia, não sendo necessário teste de confirmação ou manutenção do rastreamento para essa paciente3.

Realizar o diagnóstico de toxoplasmose adquirida na gestação nem sempre é simples. A soroconversão pela confirmação, em duas amostras de soro colhidas em um intervalo de duas semanas, de que a paciente que era IgG e IgM não reagente se torna IgG e IgM reagente é a situação de diagnóstico mais fácil, porém não é a mais frequente.

A situação mais observada é a gestante com resultado de uma sorologia IgG e IgM reagente no primeiro ou segundo trimestre de gestação, sem sorologia comparatória anterior. Nesse caso, é importante determinar se a infecção ocorreu antes da concepção ou durante a gravidez.

Os anticorpos IgM são detectados precocemente e podem permanecer positivos por até um ano após a infecção aguda. Assim, para estabelecer se os anticorpos IgM e IgG positivos detectados no início do pré-natal refletem infecção recente, passada ou um resultado falso-positivo (reação cruzada com outros anticorpos IgM circulantes), deve-se solicitar o teste de avidez de anticorpos da classe IgG8.

Os anticorpos da classe IgG surgem após duas semanas do início da infecção, atingem o pico com seis a oito semanas e persistem por período indefinido8. A avidez de IgG auxilia na diferenciação de uma infecção recente de outra adquirida há algum tempo, uma vez que a afinidade do anticorpo pelo antígeno tende a aumentar com o intervalo de tempo. Dessa forma, a presença de alta avidez, superior a 60%, permite definir que a infecção ocorreu há mais de quatro meses. Já a baixa avidez, inferior a 30%, não faz diagnóstico preciso de infecção recente, já que ela pode persistir por anos em algumas mulheres9.

Outro fator a ser considerado para o diagnóstico de infecção provável recente é o aumento de duas vezes ou mais no título de IgG em relação a duas amostras sequenciais obtidas com três semanas de intervalo, testadas simultaneamente no mesmo laboratório e com a mesma técnica.

A interpretação das sorologias durante o pré-natal (Figura 1) é fundamental para a adoção de medidas de prevenção primária e secundária e para o tratamento da infecção fetal o mais rápido possível, reduzindo assim as repercussões para o feto e o recém-nascido.

Fluxograma para interpretação dos resultados da sorologia para toxoplasmose durante a assistência pré-natal.

MANEJO CLÍNICO

É recomendado que se inicie o tratamento de gestantes com diagnóstico de toxoplasmose recente ou provável o mais rápido possível, mesmo em pacientes que ainda aguardam para repetir sorologia ou realizar amniocentese. O tempo de transição da forma infecciosa aguda de taquizoíta do parasita, que é responsável pela destruição do tecido no cérebro fetal, para a forma bradizoíta latente, contida nos cistos teciduais, é clinicamente importante porque os cistos não são suscetíveis a antibióticos. Esse tempo (normalmente menor do que três semanas a partir da soroconversão) é considerado a “janela de oportunidade” terapêutica para se prevenir ou reduzir o dano neurológico fetal3.

Ao se diagnosticar a soroconversão para toxoplasmose, sendo esta comprovada ou suspeita, deve-se encaminhar a paciente para um centro de referência e iniciar tão logo o tratamento. A investigação inicial fetal por meio da ultrassonografia é prontamente recomendada.

A escolha do tratamento varia de acordo com o centro de referência e é baseada na idade gestacional no momento do diagnóstico. Em geral, a espiramicina é recomendada para mulheres cujas infecções foram adquiridas e diagnosticadas antes de 18 semanas de gestação e a infecção do feto não foi documentada ou suspeitada na avaliação ultrassonográfica. A espiramicina atua reduzindo a transmissão ao feto e é mais eficaz se iniciada nas primeiras oito semanas após a soroconversão10. Com 18 semanas de idade gestacional se realiza a amniocentese para pesquisa de reação em cadeia da polimerase (PCR) para Toxoplasma gondii no líquido amniótico. Caso esse exame venha negativo, deve-se manter a espiramicina até o parto. No caso em que o PCR venha positivo ou haja achados ultrassonográficos sugestivos de infecção, fica confirmada a infecção fetal e é indicada a troca da espiramicina para o tratamento tríplice com pirimetamina, sulfadiazina e ácido folínico até o parto1,3.

Já em pacientes com conversão sorológica a partir da 18ª semana de gestação, existe uma tendência em se optar por iniciar diretamente o esquema tríplice com pirimetamina, sulfadiazina e ácido folínico até o resultado da amniocentese, porém a espiramicina continua sendo uma opção e recomendada em alguns serviços. Caso o PCR venha positivo, mantém-se o esquema tríplice até o parto. Todavia, se o PCR no líquido amniótico vier negativo e a ultrassonografia fetal estiver normal, alguns serviços optam por manter o tratamento tríplice em vez da espiramicina considerando ainda existir um risco de transmissão placentária após a amniocentese11.

Em qualquer caso de conversão sorológica para toxoplasmose durante a gestação, mesmo quando não ocorre a confirmação de infecção fetal por meio do PCR do líquido amniótico, é recomendado o acompanhamento ultrassonográfico mensal com especialista. Caso se encontrem alterações sugestivas de infecção congênita na ultrassonografia, o tratamento tríplice com pirimetamina, sulfadiazina e ácido folínico está indicado até o parto12,13. Gestantes em tratamento com o esquema tríplice devem acompanhar com hemograma e contagem de plaquetas semanalmente.

O cuidado pré-natal deve seguir a rotina de exames e consultas, incluindo seguimento ultrassonográfico e tratamento quando indicado (Figura 2). O diagnóstico de toxoplasmose congênita e o seu tratamento não afetam o momento ou a via de parto.

Fluxograma para o manejo da gestante com suspeita ou confirmação de ter adquirido toxoplasmose durante a gestação.

PCR: reação em cadeia da polimerase; USG: ultrassom. *Existe uma pequena chance de o resultado do PCR ser falso-negativo, não havendo consenso sobre a melhor conduta. Nossa sugestão é trocar para a espiramicina, porém manter o esquema tríplice até o parto é uma opção aceita. Sempre se deve manter o acompanhamento ultrassonográfico.

supported-by

Fonte de financiamento: nenhuma.

Conflict of interests

Conflito de interesses: nada a declarar.

Affiliation

1 Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz - Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
2 Perinatal, Rede D’Or - Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
3 Universidade Federal Fluminense - Niterói (RJ), Brasil.

REFERENCES

1. Maldonado YA, Read J, Byington CL, Barnett ED, Davies D, Edwards KM, et al. Diagnosis, treatment, and prevention of congenital toxoplasmosis in the United States. Pediatrics. 2017;139(2):e20163860. https://doi.org/10.1542/peds.2016-3860
2. Bischoff AR, Friedrich L, Cattan JM, Uberti FAF. Incidência de toxoplasmose congênita no período de 10 anos em um hospital universitário e frequência de sintomas nesta população. Bol Cient Pediatr [Internet]. 2015 [acessado em ago. 2021];4(2):38-44. Disponível em:
3. Peyron F, L’ollivier C, Mandelbrot L, Wallon M, Piarroux R, Kieffer F, et al. Maternal and congenital toxoplasmosis: Diagnosis and treatment recommendations of a French multidisciplinary working group. Pathogens. 2019;8(1):24. https://doi.org/10.3390/pathogens8010024
4. Cortina-Borja M, Tan HK, Wallon M, Paul M, Prusa A, Buffolano W, et al. Prenatal treatment for serious neurological sequelae of congenital toxoplasmosis: An observational prospective cohort study. PLoS Med. 2010;7(10):e1000351. https://doi.org/10.1371/journal.pmed.1000351
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7. Brasil. Ministério da Saúde. Nota Técnica nº 14/2020-COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS. Brasil: Ministério da Saúde; 2020.
8. Gras L, Gilbert RE, Wallon M, Peyron F, Cortina-Borja M. Duration of the IgM response in women acquiring Toxoplasma gondii during pregnancy: Implications for clinical practice and cross-sectional incidence studies. Epidemiol Infect. 2004;132(3):541-8. https://doi.org/10.1017/S0950268803001948
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10. Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC). Parasites - Toxoplasmosis (Toxoplasma infection). Estados Unidos: Global Health, Division of Parasitic Diseases and Malaria; 2020.
11. Sterkers Y, Pratlong F, Albaba S, Loubersac J, Picot M-C, Pretet V, et al. Novel interpretation of molecular diagnosis of congenital toxoplasmosis according to gestational age at the time of maternal infection. J Clin Microbiol. 2012;50(12):3944-51. https://doi.org/10.1128/JCM.00918-12
12. Paquet C, Yudin MH. No. 285-Toxoplasmosis in pregnancy: prevention, screening, and treatment. J Obstet Gynaecol. 2018;40(8):e687-e693. https://doi.org/10.1016/j.jogc.2018.05.036
13. American College of Obstetricians and Gynecologists. Cytomegalovirus, parvovirus B19, varicella zoster, and toxoplasmosis in pregnancy. Practice Bulletin No. 151. Obstet Gynecol. 2015;125(6):1510-25. https://doi.org/10.1097/01.aog.0000466430.19823.53

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Autor correspondente: renatosa.uff@gmail.com

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Received: 10/06/2021

Accepted: 28/10/2021

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