EDITORIAL
Navigare necesse, vivere non est necesse

Antonio Braga 1, 2

2021
Vol. 131 - Nº.01
Pag.02 – 05

Quando o astuto poeta Fernando Pessoa (Lisboa, 13 de junho de 1888 - Lisboa, 30 de novembro de 1935) reemergiu a sentença do general Pompeu Magno (Piceno, 29 de setembro de 106 a.C. - Pelúsio, 28 de setembro de 48 a.C.), imortalizada por Plutarco (Queroneia, 46 d.C. - Delfos, 120 d.C.), “navegar é preciso, viver não é preciso”, fê-lo de modo a transmutar seu sentido militar, em que a navegação garantiria o abastecimento de trigo em Roma, trazendo a singeleza da vida, em que se navega nem sempre com a precisão das bússolas...

O registro da História tem esses riscos, ainda mais quando se fala sobre fatos recentes, com personagens vivos que servem como ponto e contraponto para sua melhor compreensão... Nesse mister, salientamos o legado de Jacques Le Goff (Toulon, 1º de janeiro de 1924 - Paris, 1º de abril de 2014), expoente da terceira geração da Escola dos Annales, que nos apresentou duas percepções nesse campo da antropologia histórica, por vezes coincidentes, por outras concorrentes: a Memória e a História! Seria verve ou diatribe eu inserir, nesse meio, mais um conceito pujante nesses dias: a Narrativa?! Fato é que a história é construída por um conjunto de memórias coletadas de maneira metodológica e crítica, que se apresenta, muitas vezes, iluminado pela ocasião, sob um construto de narrativa. Nada mais humano, nesse processo, que sejam necessários ajustes aqui e acolá, para manter a liga dos fatos, os ajustes do tempo e a composição com a necessidade dos dias.

Em meio aos preparativos de nosso 45º Congresso de Ginecologia e Obstetrícia do Rio de Janeiro, pede-me nosso Presidente Professor Renato Sá que eu faça um singelo arrazoado contextualizando a importância do ano de 2021 para nossa Associação de Ginecologia e Obstetrícia do Estado do Rio de Janeiro. Cubro-me do espírito de Goethe (Frankfurt, 28 de agosto de 1749 - Weimar, 22 de março de 1832) para fazê-lo: “Quem não conhece a História de sua Arte, nada de sua arte conhece!”.

Os fundamentos do associativismo médico em Ginecologia e Obstetrícia no Rio de Janeiro deram-se mercê do espírito apostolar de Fernando Augusto Ribeiro de Magalhães (Rio de Janeiro, 18 de fevereiro de 1878 - Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 1944), que fundara, em 29 de março de 1921, a Sociedade de Obstetrícia e Ginecologia do Brasil.

Em um país que vicejava seus ares republicanos e que se preparava para celebrar o centenário de sua independência, era o Rio de Janeiro, para além da capital, um fervilhante caldeirão cultural. Sua pujança era natural, e na Medicina não havia concorrentes (a Casa de Arnaldo na Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paula ainda engatinhava, com nove anos): tudo no Rio de Janeiro era grandioso - A Universidade seria do Brasil, a Faculdade de Medicina era Nacional; por óbvio que a Sociedade de Obstetrícia e Ginecologia também refletiria essa grandeza (aqui vale lembrar que a nossa Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia - FEBRASGO - só surgiria em 1959)...

Dessa forma, temos já aqui um primeiro marco que devemos celebrar em 2021: o centenário do associativismo médico em torno da Ginecologia e Obstetrícia no Rio de Janeiro (e por que não dizer também no Brasil)!

Não obstante sua genialidade, Magalhães presidiu a Sociedade de Obstetrícia e Ginecologia do Brasil por 19 anos (até 1940), refletindo uma personalidade, ao menos, centralizadora. Duas situações, contudo, promoveram uma diástase nessa sociedade. A primeira diz respeito ao fato de ser Magalhães obstetra de escol, nume tutelar da especialidade, que vicejou sob sua atuação, levando seu discípulo mais distinto, Professor Jorge de Rezende (São Paulo do Amazonas, 31 de agosto de 1911 - Rio de Janeiro, 2 de maio de 2006) a vaticinar que: “A Obstetrícia no Brasil será dividida, pelo historiador do futuro, em dois períodos: antes e depois de Fernando Magalhães”. Por essa razão, a Ginecologia ficou escanteada como um apêndice menor da pujança obstétrica de Magalhães. Isso não era de estranhar-se, pois àqueles idos a Ginecologia ainda não adquirira independência enquanto especialidade, sendo tutelada pela Cirurgia Geral, à época sob a cátedra de Brandão Filho (Cantagalo, 19 de maio de 1881 - Rio de Janeiro, 18 de setembro de 1957), o “Príncipe dos Cirurgiões brasileiros”. A segunda situação reflete a cizânia que separou Magalhães de um brilhante obstetra que ousara respirar ares para além de Magalhães; seu nome: Arnaldo de Moraes (Rio de Janeiro, 28 de agosto de 1893 - Rio de Janeiro, 6 de abril de 1961).

Convicto de que não teria luz sob a copa frondosa de Magalhães, Arnaldo de Moraes não apenas se afasta de seu mentor, como decide mergulhar na Ginecologia, estabelecendo seus fundamentos e criando a Sociedade Brasileira de Ginecologia em 1936.

Para a especialidade, essa separação foi marcante, permitindo que Arnaldo de Moraes, no Hospital Moncorvo Filho, criasse as bases para a detecção precoce do câncer do colo do útero, conjugando, vez primeira, o tripé que associava a citologia-colposcopia-biopsia como estratégia de despistamento do câncer cervical, que ele chamou, de forma inteligente, de “preventivo do câncer do colo do útero”. Contudo, a separação de duas sociedades fraternas, com a missão conspícua de zelar pela vida integral da mulher, não ajudou o associativismo médico em nossa especialidade.

Encaminhadas essas vidas para o undiscovered country, quis o Destino que ambas as Sociedades fossem presididas, em 1961, por Octávio Rodrigues Lima, o último parteiro das Princesas de Petrópolis.

Catedrático de Obstetrícia da Nacional de Medicina e Diretor da Maternidade Escola, Rodrigues Lima era culto e poliglota, parteiro consumado versado nos volteios e extrações, conquanto fosse avesso aos tratados. Com espírito livre, decidiu pôr fim à divisão que afastava Professores e Assistentes, Obstetras e Ginecólogos, e impedia o florescimento associativista da especialidade no Rio de Janeiro. Dessa feita, em 29 de dezembro de 1961, deu-se a fusão da Sociedade de Obstetrícia e Ginecologia do Brasil com a Sociedade Brasileira de Ginecologia, emergindo a novel Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia da Guanabara. Eis aqui a necessidade de uma reflexão: seria a Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia da Guanabara o embrião da nossa Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia do Estado do Rio de Janeiro?

Aqui cabem algumas digressões sobre a confusa história política que envolve o Rio de Janeiro.

Enquanto capital da República, o Rio de Janeiro era um município neutro que sediava o Distrito Federal. Com a migração da capital para Brasília, o antigo Distrito Federal tornou-se o Estado da Guanabara, com apenas uma única cidade: o Rio de Janeiro, vizinho da capital do Estado do Rio de Janeiro, em Niterói. Dessa forma, resta claro que a Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia da Guanabara era, mais uma vez, uma associação do município do Rio de Janeiro. Isso se torna ainda mais evidente quando, em dezembro de 1975, a Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia da Guanabara (do município do Rio de Janeiro) se funde com a Sociedade Fluminense de Ginecologia e Obstetrícia (fundada em 1965, com sede em Niterói), esta sim, com representatividade do Estado do Rio de Janeiro (sem incluir, contudo, a cidade do Rio de Janeiro). Isso foi necessário para se adequar a Lei complementar número 20, de 1º de julho de 1974, durante a presidência do general Geisel, em que se decidiu realizar a fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, a partir de 15 de março de 1975, mantendo a denominação de Estado do Rio de Janeiro, com a cidade do Rio de Janeiro voltando a ser a capital fluminense. Nessa ocasião é que, de fato, surge a Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia do Estado do Rio de Janeiro, não apenas como entidade representativa dos tocoginecologistas, mas com abrangência de todo o Estado do Rio de Janeiro, tal qual o conhecemos hoje.

Independentemente dessas confusões políticas que envolveram nossa cidade do Rio de Janeiro (e já vão de longe), fato é que na presidência iluminada do Professor Paulo Belfort (Manaus, 25 de dezembro de 1929 - Rio de Janeiro, 9 de setembro de 2012), entre 1970 e 1973, foi organizado de 5 a 9 de setembro de 1971 o Congresso Jubileu da Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia do Rio de Janeiro (1921-1971).

Notem que isso ocorre quatro anos antes de efetivamente a sociedade representar o Estado do Rio de Janeiro, o que mostra que essa percepção era anterior às determinações políticas que ainda iriam ocorrer. Isso legitimaria, 50 anos depois, que a Professora Vera Fonseca pudesse levar a cabo, de forma brilhante, o Jubileu da nossa Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia do Estado do Rio de Janeiro, em 2011.

O objetivo dessa memorabilia, para além de resgatar as origens de nossa Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia do Estado do Rio de Janeiro, é compor duas narrativas históricas que são complementares, de modo a não deixar dúvidas de que, em 2021, temos duplo motivo para celebrar o Centenário do Associativismo em Ginecologia e Obstetrícia no Rio de Janeiro (como também no Brasil), bem como congraçarmo-nos com os 60 anos da Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia do Estado do Rio de Janeiro, nascida da junção pacificadora da Sociedade de Obstetrícia e Ginecologia do Brasil com a Sociedade Brasileira de Ginecologia, ocorrida em 1961.

Por fim, resta materializar esses festejos com o bom gosto heráldico que nos legou Octávio Rodrigues Lima. O Professor Belfort, ao celebrar o Jubileu de Ouro da Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia do Rio de Janeiro, mandou cunhar a Medalha Fernando Magalhães, fundador este da primeva associação médica da especialidade e Patrono da Obstetrícia do Brasil. Em um auditório lotado, os Catedráticos da especialidade foram agraciados com essa honraria, que se perpetuou em nossa sociedade, distinguindo os mais expoentes entre os especialistas do Estado do Rio de Janeiro.

Para além da excelsa honra de ser eu o agraciado com a referida medalha, no ano do Centenário do Associativismo em Ginecologia e Obstetrícia no país, quis a nossa associação homenagear cinco de seus membros ilustres, dois dos quais estiveram no Congresso jubilar de 1971: os Professores Roberto Benzecry e Carlos André Henriques; dois filhos de Presidentes da nossa sociedade, Professores Rezende Filho (representando o legado dos ex-Presidentes obstetras, em nome de seu pai Jorge de Rezende) e Luiz Fernando Amaral (representando o legado dos ex-Presidentes ginecologistas, em nome de sua mãe Professora Anna Lydia Pinho do Amaral, ainda que também filho do ex-Presidente e obstetra de escol Professor Luiz Beethoven Dantas do Amaral) e a Professora Vera Fonseca, presidente do Jubileu da nossa Associação de Ginecologia e Obstetrícia do Estado do Rio de Janeiro (SGORJ) em 2011, com uma réplica da Medalha Fernando Magalhães do Jubileu, mas agora acrescida da efígie do Centenário que ora comemoramos.

A Verdade, filha do Tempo, por vezes vive o conflito entre o Cronos e o Kairós. Cronos quer a medida exata, a temporalidade precisa; enquanto Kairós se contenta com a oportunidade da graça. Em meio à pandemia de COVID-19, com tantas vidas ceifadas, termos a oportunidade de celebrarmos a Vida, entre amigos, em meio à nossa SGORJ, independentemente da efeméride, é uma grande Graça de Deus - não a desperdicemos! Vida longa à SGORJ!!! Que venham mais 60 anos e outros tantos centenários do associativismo médico em tocoginecologia no Estado do Rio de Janeiro!

Dies fastus!

Affiliation

1 Professor de Obstetrícia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro (RJ) e da Universidade Federal Fluminense - Niterói (RJ), Brasil.
2 Presidente Emérito da Sociedade Brasileira de História da Medicina.
Universidade Federal Fluminense
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